Deus não dorme

Pé ante pé, enquanto à sua volta murmuravam gritos exacerbados de dor e mágoa, recostava-se naquele canto escuro, escondida a tremer. E não era de frio.

O coração quebrado em pedaços trazia-lhe uma dor tão forte cá dentro que não era capaz de disfarçar, mesmo que o sorriso forçado do “Está tudo bem” tentasse camuflar a realidade enquanto se distraía, no trabalho. Mas agora, no fim do dia, quando regressava a casa, temia e tremia pelas razões erradas. O que iria despoletar a ira? Não sabia, mas tinha quase a certeza que ela estaria presente, mais uma vez, para acabar com os poucos minutos de sossego da família.



Quantos sentimentos percorreram a sua mente naqueles momentos recorrentes de violência, impiedosos e mortíferos, que aos poucos e poucos a assassinavam por dentro? E quantas vezes pensou em afastar-se, em deixar aquela vida e até a própria vida? Mas não era capaz.

Mais uma noite. Ainda naquele canto, em silêncio, deixava o coração gritar aos quatro cantos, e chorava copiosamente enquanto falava com o seu Deus. Em silêncio. Sempre em silêncio. Deixava que os seus pensamentos, e em pensamento, expressassem sem censura tudo o que lhe ia na alma, de coração aberto ao Seu Criador.

Enquanto enxugava as lágrimas, procurava com os seus magros dedos alguma coisa no único objeto que tinha com ela — o seu smartphone. E os seus olhos, ainda incrédulos, caíram sobre as palavras do Salmista: “Já estou cansado de gemer. Molho a almofada com as lágrimas que derramo durante toda a noite. Até a minha vista está cansada e turva de tanta tristeza, por causa dos que me querem mal. Afastem-se de mim todos os que praticam a maldade, porque o Senhor já ouviu o meu lamento. Ele já ouviu a minha súplica! O Senhor responderá a todas as minhas orações.” (Salmo 6:6-9, OL) Abria-se uma janela de esperança, como um oásis no deserto. Deus já tinha ouvido a sua súplica. Deus iria responder.

Quanto desespero percorre os cantos da cidade? Quanta dor está maquilhada pelo aparente glamour, o profissionalismo e a boa educação? Quantas lágrimas ficam retidas pelo medo da condenação?

Este mês fomos desafiados a olhar para cima no meio de todas as disparidades e incongruências que a vida, cá em baixo, nos traz. Seja por causa do estado do mundo ou do estado do nosso mundo, da nossa vida.

Felizmente, Deus não está morto. Deus não está cego. Deus não está surdo. Ele ouve as nossas orações. Ele vê o que se passa na nossa vida. Ele vive e não dorme. Entreguemos-Lhe a nossa vida e vivamos em total segurança, na Sua provisão e ação, mesmo que as circunstância nos digam o contrário. Coloquemos em Deus — e só Nele, — a nossa confiança.

“Diz o Senhor: Maldito é o homem que põe a sua confiança noutro homem cujo coração se afasta de Deus, que confia na natureza humana para se fortalecer. Será semelhante a um débil cacto no deserto, sem esperança de melhores dias, vivendo em extensões de terreno ensalitrado, numa zona de estéreis desertos; tempos de prosperidade foram-se de vez, para ele.  Abençoado é aquele que confia no Senhor; que fez do Senhor a sua esperança, a sua confiança. É como uma árvore plantada junto à margem dum rio, cujas raízes encontram facilmente água, que não se incomoda com os fortes calores, nem se aflige com os meses de seca. As suas folhas mantêm-se verdes, e produz sempre os melhores frutos.” (Jeremias 17:6-8, OL)

Ana Ramalho Rosa



in revista Novas de Alegria, fevereiro 2017. Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico

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