A arte de bem morrer

A luta pelo direito a uma morte “boa” tem sido trazida a público recentemente.

Mais do que antes, e em parte devido à mobilização de várias figuras públicas numa declaração conjunta, somos confrontados com uma questão. Porque é que uma pessoa não pode escolher se quer ou não viver? E a partir dessa, surgem naturalmente o como, o quando, o onde… A precipitação do ser humano em querer dominar a morte, é uma consequência prática da degeneração que vem sendo produzida pelo pecado, dia após dia, ano após ano, década após década. E como? Pela quebra de proximidade gerada no Éden, o Homem passou a lidar com sentimentos, pensamentos ou momentos de intensa carga negativa (Génesis 3:17-19). Instalaram-se a mentira, o homicídio (Génesis 4:3-8), a vingança (Génesis 4:23-24)…


O ERRO BASE
O Homem passou a querer ser autossuficiente, renegando Deus e assumindo um direito fabricado de se igualarem a Ele (Génesis 11:1-9). O pensamento passou a ser não de companheirismo entre Deus e Homem, mas de competição entre Homem e Deus. É desta base que partem desejos como o do controlo da vida e da morte. Se o Homem entende que pode ser igual a Deus, então porque viver limitado pelos Seus mandamentos? Não será um ser humano melhor conhecedor de um coração sofredor de um seu semelhante, do que um deus distante, passivo e incompreensível? Não!

Para compreendermos melhor o porquê, precisamos de primeiro entender que ao criar o Homem, Deus fê-lo à Sua imagem e semelhança (Génesis 1:26). Ou seja, um ser capaz de se relacionar e predisposto a viver em comunidade, um ser que é essencialmente espiritual e que se rege por uma vontade moral, um ser que ama e procura o bem do próximo (Levítico 19:18, Mateus 5:44).

Entendamos com isto a imensidão de fatores que aproximam Deus de um ser humano. Ao criar uma vida, Deus não o faz de modo aleatório ou desprendido de sentimentos. Não existe vida para quem Deus aja de modo indiferente. Isso prova-se no sacrifício de Jesus Cristo (João 3:16). O glorioso amor de Deus manifestou-se na mais humilhante das mortes (Filipenses 2:7-9), porque um Deus que ama, que sofre com a Sua criação, não é uma imagem distante e vaga, sem sentimentos ou emoções.

CONSEQUÊNCIA DO PECADO
A verdade é que a ação do pecado pode produzir consequências horríveis e que imputem sofrimento intenso e atroz. Só passando pelo desespero de Job, será possível a qualquer um de nós, não pensar em desejar abreviar a sua existência (Job 2:9). A agonia não está, infelizmente, ausente do dia-a-dia do ser humano. Mas não tem que ser o fator dominante. Deus acompanha o ser humano no seu sofrimento. Cristo curou leprosos e paralíticos de longa data, os socialmente excluídos da época. Aqueles que por motivos de doença, poderiam desejar a morte. Cristo curou uma mulher com uma perda de sangue de vários anos, sem meios financeiros para poder ser auxiliada por médicos. Uma mulher cuja vida pareceria devotada a uma doença que a consumiria, que também teria o “direito” a reclamar por uma morte rápida e digna, foi restaurada. A doença e a morte, sendo consequências do pecado, precisam por isso de começar a ser resolvidas a partir desse ponto. É na resolução do pecado que começa a resolução do sofrimento, da doença e da morte.

Mas porquê? Porque sendo o pecado o fator que destruiu a harmonia e a perfeição do Éden veio também danificar o ser humano (Romanos 3:23). A doença passou então a fazer parte da equação da vida do Homem (Romanos 5:12). Não raras vezes, lemos no Antigo Testamento que a doença (especialmente a lepra) estava conotada com o pecado de alguém. Então, como resolver esta situação? Todas as tentativas do Homem em resolver esse problema por si só, falharam. A solução encontra-se em Jesus Cristo. É Jesus que nos pode trazer realmente uma “boa morte”, uma morte com a certeza de uma eternidade sem dor, sem doenças, sem lágrimas. Uma eternidade de gozo, de paz, de alegria no Espírito Santo. É através de Cristo que, nós, Igreja que vive na era pós-pós-moderna, deve manifestar-se nesta luta. É amando como Ele amou, orando como Ele orou, pedindo a intercessão de Deus. A cura divina não deixou de existir porque a Medicina tem vindo a progredir, mas a nossa confiança tem-se deixado adormecer. E com isso, sofremos porque deixamos de crer no poder de Deus e sofre quem ainda não experimentou viver com Deus porque a Igreja se fecha e se cala.

COM O PRÓXIMO ATRAVÉS DE CRISTO
Não se pode minimizar a extensão do sofrimento e das limitações das doenças graves. O problema do sofrimento é algo com que o ser humano tem dificuldade em lidar. Mais ainda quando uma doença terminal nos afecta, seja de modo direto ou indireto. Deve existir um profundo respeito pelo sofrimento do próximo, ao ponto de sermos compassivos para com ele. Uma doença terminal provoca sempre um reajustar no estilo de vida. Existe uma sensação de impotência e de falta de capacidade para reagir. Uma doença terminal, mata não apenas o corpo, mas também a mente. Ainda assim, não podemos minimizar o poder de Deus, que também se demonstra nestas situações. A verdade, é que para quem não tenha ainda optado por seguir Jesus, a morte parece uma solução mais apetecível, e o vazio do pós-vida, a negritude da inexistência parecem ser o verdadeiro descanso final. No entanto, como cristãos, cabe-nos a missão de anunciar o Evangelho, mas também de entender como aqueles que sofrem e não amam Deus encaram o fim da sua vida. Um desejo ardente pela morte, como lido no romance de Cormac McCarthy, Sunset Limited, deve fazer pastores e igrejas pensar: como lidamos com aqueles que estão em fim de vida? Como mostrar a graça e a verdade, para que a boa morte (tradução do termo eutanásia na prática) seja realmente boa e não apenas uma boa ilusão? Este é um desafio a levar a sério, algo em que devemos refletir e trabalhar.

Para quem ainda não parou para um frente a frente real com Jesus, a eutanásia parece ser uma solução limpa. Um ato de caridade, até… No entanto, não existe caridade em precipitarmos na morte um nosso semelhante. Pelo contrário! Deus quer que desfrutemos de uma vida abundante com Ele. Deixá-Lo ser o nosso tudo, fará com que tudo o que passemos e vivamos, seja com Ele. Não estaremos mais sós na doença. Não estaremos mais desacompanhados e desamparados. Podemos chorar e sentir dificuldades, algo que o próprio Senhor Jesus sentiu, mas sabemos que Deus está connosco para nos acompanhar. Essa é uma garantia dada por Cristo: “As minhas ovelhas obedecem à minha voz, eu conheço-as e elas seguem-me. Dou-lhes a vida eterna e elas nunca mais hão de morrer, nem ninguém as poderá arrancar da minha mão. Aquilo que o meu Pai me deu é o mais importante. Por isso ninguém as pode arrancar das mãos de meu Pai.” (João 10:27-29, BPT).

UMA REFLEXÃO FINAL
Todo o ser humano merece condições dignas e de conforto na hora de ser chamado à presença de Deus. Mas a real, verdadeira e importantíssima “boa morte”, atinge-se porque Cristo já morreu da pior das maneiras (Isaías 53). Pela morte e ressurreição de um, todos nós podemos agora escolher. E esta é uma escolha que é feita diariamente, todos os dias, nas situações mais complicadas: em quem vamos descansar e confiar? Em nós ou em Cristo? Não devemos renegar o bom e correto uso da Medicina, nomeadamente através do desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, os quais visam minimizar ao máximo o dilema de pacientes e famílias. Nestes Cuidados Paliativos, podemos encontrar ajuda especializada, não apenas ao nível de mitigação da dor e dos sintomas físicos da doença, mas também a nível de apoio emocional e psicológico. Fica um apelo, para que todos (sobretudo aqueles que fazem o serviço de capelania nos hospitais) possam contribuir nesta hora difícil, sobretudo através da ajuda espiritual. O ladrão crucificado ao lado de Cristo teve também a sua oportunidade num momento fulcral (Lucas 23:41-43). E nunca é tarde demais para que alguém possa decidir morrer bem, submetendo os seus últimos tempos a Jesus, pedindo-Lhe que seja Senhor da sua vida e sanador da sua alma. Não devemos esquecer que oportunidade ímpar de dizer a Jesus: “Sê meu Senhor e Salvador, ajuda-me neste sufoco”, pode (e certamente trará) alívio.

O meu apelo vai em direção a todos – creiam ou não em Deus. A boa morte não se desfruta terminando a vida como achamos que é humanamente melhor. A boa morte desfruta-se sabendo que ao terminar esta jornada, temos uma morada de descanso. A arte de bem morrer é o ato de morrer em paz e no regaço de Deus. Longe do pecado, caminhando para a eternidade de alegria e encontrando Cristo, que abraçando cada um de nós “enxugará todas as lágrimas dos seus olhos e já não haverá mais morte nem luto nem pranto nem dor” (Apocalipse 21:4, BPT).


Ricardo Rosa

in revista Novas de Alegria, julho 2016. Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico

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