Um desconforto necessário


Era uma época áurea. Havia um ambiente fantástico. Embora houvessem contrariedades, as vitórias e a operação sobrenatural de Deus só davam mais força à verdade que proclamavam – o Mestre estava vivo e desejava salvar, de uma vida sem sabor com um destino infeliz, aqueles que cressem. Nos relatos de Lucas, nos primeiros capítulos do livro de Atos dos Apóstolos, percebemos isso mesmo. Estavam ali, em Jerusalém e arredores, felizes com aquilo que Deus estava a fazer.

A forma de pensar dos discípulos, ainda toldada pelas tradições com que lidaram quase toda a vida, fazia-os olhar de lado ou até ignorar aqueles que eram diferentes, que não faziam parte do povo israelita e/ou não seguiam os seus preceitos religiosos. Durante cerca de três anos tinham acompanhado Jesus. Ele cruzou-Se com gente bem diferente que O procurava, e nunca rejeitou ninguém, antes acolheu. Tinha sido um tempo de aprendizagem, é certo, mas muito ainda o Espírito Santo teria que fazer nas suas mentes e nos seus corações.


Antes de Jesus ascender, para junto do Pai, Ele fora explícito: “Mas receberão poder ao descer sobre vós o Espírito Santo e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até aos lugares mais distantes do mundo.” (Atos 1:8, BPT) Algo teria que acontecer para forçar esta realidade a acontecer, não “porque sim”, mas porque o amor de Deus por todos era (e é ainda hoje) maior do que a nossa mente egoísta, conformada e até por vezes hipócrita, consegue alcançar.

O ponto de viragem, que os levou a sair da sua zona de conforto, Jerusalém, foi a morte de Estêvão. O capítulo 8 de Atos dos Apóstolos diz que “(...) Nesse mesmo dia, teve início uma grande perseguição contra a igreja de Jerusalém. Todos os crentes, menos os apóstolos, se espalharam pelas povoações da Judeia e da Samaria (...) Aqueles que tinham sido espalhados pregavam o evangelho por toda a parte.” (Atos 8:1 e 4, BPT) Logo de seguida, Filipe evangeliza um alto funcionário da Etiópia, que crê em Jesus e decide segui-Lo (versículos 26 a 29). E a expansão da Palavra de Deus prossegue, através de Pedro, de Barnabé, de Paulo, de Silas e de tantos outros, para que o maior número de pessoas pudesse conhecer a verdade da salvação e da nova vida em Cristo – que chegou a povos bem distantes no espaço e no tempo, até nos alcançar a nós.

Admiro e gosto do tema que o movimento das Assembleias de Deus em Portugal irá ter neste triénio: “Até que todos ouçam”. Estamos a viver dias bem diferentes daqueles da igreja nascente, descrita em Atos dos Apóstolos. Mas, olhando-me ao espelho, não posso ignorar como temos vivido um cristianismo tão egocêntrico e confortável. Questiono-me (primeiro a mim) se não precisamos também que Deus nos force, pelas circunstâncias pessoais, nacionais e internacionais, a fazer aquilo que Ele mais deseja: falar do Seu amor por cada ser humano – independentemente da sua raça, da sua posição social, da sua origem, do seu passado, da sua localização.

O que eu oro, e peço a Deus, é que faça cair dos olhos do meu coração todo o preconceito, o orgulho, o egoísmo, a passividade e a insensibilidade, e me encha do Seu amor, da Sua compaixão, da sensibilidade do Seu Espírito, por aqueles que ainda não têm o mesmo privilégio que eu: de conhecê-Lo, vivendo com Ele e para Ele.

No nosso dia a dia, como filhos de Deus e como comunidade (igreja local), expressamos, nas nossas palavras e ações, as nossas prioridades. A igreja existe para glorificar a Deus, espalhando por toda a parte essa mensagem da Salvação... a todos. Que Ele nos dê o desconforto necessário para agir, para mudar, porque “Deus amou de tal modo o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crer não se perca, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16, BPT)



Ana Ramalho Rosa


in revista Novas de Alegria, junho 2016. Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico

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