(Re)volta

Todas as histórias de encantar começam com “Era uma vez”, mas não sei se esta, tão real, terá o mesmo final feliz que a tradição me prometeu.
O vazio não mente. As paredes despidas da cor de outrora não enganam. E o mar do teu silêncio grita aos meus ouvidos numa ausência de corpo, alma, espírito, de coração. No monte dos gritos secos, da agonia heterogénea entre a dor e o desapego forçado, dói-me o coração quase de morte, num pranto exacerbado pelo tempo que apagou as pegadas que deixaste ao fugir por esse chão.
Numa revolta anunciada, de malas e bagagens arrebatadas pelos sonhos e pelo orgulho de descobrir o sabor mortal do pecado disfarçado pelo sucesso prometido, embrenhaste-te pela penumbra, numa valsa ilusória, num triunfo efémero, numa espiral onde os aplausos ensurdeceram a tua consciência, a história, o passado.

Com a herança a esbanjar-se pelos bolsos, rotos pela tensão entre o que eras e o que te tentava, cuspiste no prato que te alimentou, espalhaste a água que te saciou, pisaste o chão que te viu crescer, pela última vez.
As palavras que deixaste de dor e revolta, reboliço dos teus dias, foram a expressão do que deitaste a perder, em troca daquilo que querias ter. E pela porta estreita saíste, alargando o teu caminho, para longe do olhar, para onde o vento te levou, para onde o teu coração ferido te entregou.
Fechaste a porta. E eu fiquei a ver-te partir, sem poder impedir a tua rota até ao cume da vida, e até ao vale dos dias que ainda não desvendaste nem viveste, mas que invariavelmente nos entram pela vida a dentro, sem pedir licença nem opinião.
O meu olhar tranquilo não furtava a dor que ainda carrego no meu peito. O meu coração, preso a essa agonia, roga pela revolta que a vida possa dar, para que te veja pelo caminho, de regresso.
Os anos passam e fico sem saber se esse meu desejo se vai concretizar, não por mero delírio egocêntrico, mas porque quero que voltes ao lar. Espreito pela janela um e outro dia, e quando vejo um vulto vir pelo caminho, anseio que sejas tu – mas nunca revejo o teu sorriso.
Não precisas mendigar nada, nem mesmo o perdão, porque os meus braços vão estar abertos para o teu regresso, para a tua restauração. Mas o caminho de volta só é possível quando o nosso orgulho cai, e se quebra o coração insensível. Quando as trincheiras da vida nos matam aquilo que não nos deixa ver mais além. Quando os sonhos despedaçados nos levam a não ter mais por onde ir senão pelo caminho inverso ao que fizemos, quando deixámos que a ilusão nos cegasse, pensando erroneamente que agora, sim, estaríamos a ver.
Não sei quando o meu olhar se vai cruzar de novo com o teu. Se num encontro casual. Se num casamento ou num funeral. Se com os olhos arrebatados pela alegria ou pela dor, de te ver voltar ou de te perder, para sempre.
 Todas as histórias de encantar começam com “Era uma vez”, mas não sei se esta, tão real, terá o mesmo final feliz que a tradição me prometeu. Não quero ser vítima do pessimismo, mas sei que a resposta está, como esteve sempre, nas tuas mãos... porque as minhas mãos continuam à tua espera para te abraçar.
Que regresses, como o filho perdido, reconhecendo que a graça de Deus te basta, nas palavras revolvidas no coração: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já nem mereço ser teu filho.” (Lucas 15:21, BPT) Como o pai da parábola, anseio um dia expressar que voltaste, venhas como vieres, e dizer “‘...este meu filho estava morto e voltou a viver, estava perdido e apareceu.’ E começaram com a festa.” (Lucas 15:24, BPT) E o Céu estará em festa!


Ana Ramalho Rosa

Texto baseado em Lucas 15


in revista Novas de Alegria, outubro 2015

Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico

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