O Freelancer

“Ser freelancer... um trabalhador independente. INDEPENDENTE! Isso mesmo! Sem depender de ninguém..."

É tão bom ser livre! Não ter patrão a quem prestar contas. Não ter poiso certo de trabalho. Não ter colegas com caras ensonadas à segunda-feira para esbarrar no corredor do escritório. Não ter que picar o ponto, aturar maus humores, nem ser obrigado a fazer pausas de apenas 15 minutos. 

Podes pensar que me sinto realmente feliz com tudo o que posso fazer sem restrições, sem limites... mas há o outro lado da moeda... aquele que eu escondo normalmente, porque me chateio só de pensar.

Tenho que pagar mais impostos, segurança social. Estou sujeito às necessidades (ou às não necessidades) daqueles que são os meus clientes directos – as empresas, os particulares. A minha vida tem um planeamento muito irregular, o que não me permite pensar em coisas a médio ou longo prazo – incluindo compromissos pessoais, como o prato que se enche na mesa.

Sou uma árvore desenraizada, um peixe que tanto está dentro como fora de água... mas esta foi a minha escolha! E sou livre (pelo menos aparentemente).”

E aparentemente há muitos cristãos freelancers por aí... aparentemente livres mas com um défice de comunidade estrondoso. Decidiram por “chatices” no escritório dos relacionamentos ou no balcão das doutrinas fundamentais, sair da família cristã onde nasceram e, depois de andarem a comer à mesa dos vizinhos (aqueles que têm sempre a galinha melhor do que a deles), a petiscar aqui e ali, deixaram que o fastio espiritual tomasse posse e rescindiram contrato com qualquer tipo de congregação. 

“Ninguém tem nada a ver com a minha vida”, “Não preciso de ninguém”, “Se me perguntam alguma coisa nunca mais vou”, “Estou-me a ‘borrifar’ para a opinião dos outros”, “Isso era para aquele tempo. O que interessa é que Deus é amor” ou “Agora estou numa fase em que preciso estar longe da igreja”, são os falsos argumentos que nos tornam independentes.

É verdade que as “chefias intermédias” nem sempre são correctas nas suas decisões estratégicas (ou na falta delas). É verdade que os “colegas de departamento” não são anjos com asas escondidas debaixo do casaco domingueiro (isso não existe, meus caros!). É verdade que os relacionamentos humanos dão trabalho, são desafiantes e nos levam a deixar a nossa razão pelo bem comum. É verdade que não há igrejas perfeitas... mas também é verdade que o modus operandi da comunidade dos filhos de Deus é a igreja universal que se exprime necessariamente numa comunidade local.

Não existem olhos independentes, braços independentes, mãos independentes. Da mesma forma, não podem existir cristãos independentes. 

Quem se quer independente, quer-se sozinho, solitário, sem alimento, sem correcção, sem protecção... porque não quer ter o trabalho de olhar para os outros, de pensar que talvez a Bíblia tenha mais razão e mais lógica do que o seu umbigo, que há assuntos e situações que ou se perdoam ou são a nossa carga para sempre – mesmo que gritemos aos quatro ventos que somos independentes. Quem não quer responsabilidades não quer privilégios, certo?

Eu não quero ser uma cristã freelancer... a independência é uma ideia falsa. Uma mentira que nos leva para longe de todos os meios que o Pai criou para sermos cada vez mais parecidos com Ele. Precisamos uns dos outros – com tudo o que isso implica. 

Deus fala no lugar secreto e meditação pessoal da Palavra, sim, mas escutarmos as meditações dos nossos irmãos também fazem parte do cardápio. Deus cura as nossas feridas e perdoa-nos, mas o perdão do outro e a aplicação dos curativos é papel de cada membro do corpo de Cristo. 

Vermos as nossas necessidades supridas pelo suor do nosso rosto – porque Deus nos dá a vida e a saúde para tal – é tão válido quanto cuidarmos de irmãos mais carenciados e sujarmos as mãos em prol daqueles que ainda não sabem que Deus é amor – e precisam vê-lo de forma prática no relacionamento entre os filhos de Deus, nas acções desinteressadas movidas por compaixão que têm para com todos.

Como igreja, sejamos a comunidade que Deus deseja... Aquela comunidade em que os casos difíceis como eu têm espaço para assumir as suas fraquezas (mesmo aquelas que nos dão arrepios na espinha pela visão irrealista de que existem pessoas perfeitas) e espaço para ser acompanhados e transformados, constantemente transformados.

Uma comunidade que nos ajude na infância, na adolescência (muito!) e na maturidade espiritual... e em cada fase do caminho com Deus, nos ajude a saber onde estamos e para onde vamos. 

Uma comunidade que nos corrija na nossa independência de Deus e no excesso de dependência dos outros. Que nos leve a tomar decisões concretas em relação ao Pai, aos outros e à vida. Que permita a espontaneidade mas previna a inconsequência. Que alimente a sabedoria e torne relevante o conhecimento.

Uma comunidade realista, com uma visão bíblica que não penda nem para o “cor-de-rosa” prosperado em dourado utópico, nem para o negro da cinza engendrado numa teologia de vida-purgatório. Onde saibamos ler a Bíblia como ela é e não como inventamos ser. Onde deixemos a Bíblia ler-nos e não quaisquer outros pensamentos – mesmo que possam ser seus complementos.

E para construir esta família espiritual, a única forma é unir numa comunidade local todos os que reconhecem Jesus como o único caminho que nos leva ao sitio certo, a única verdade que nos dá segurança, a única vida que preenche o espaço que Lhe pertence e nos dá vida para levar aos outros. Isto inclui os teoricamente dependentes de Deus, os independentes de todos, os demasiado dependentes dos outros... Porque todos estamos no mesmo processo. 

Ana Ramalho

in revista Novas de Alegria, suplemento NAJovem, Novembro 2010

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